Gosto : sabor de viver e aversão ao outro

Adriana Costa
3 min readMar 16, 2023
Hendrick ter Brugghen (1588–1629) — Allegory of taste
Hendrick ter Brugghen (1588–1629): Allegory of taste

A boca é o lugar manifesto do intercâmbio com o mundo e da interiorização do universo em si; nele o gosto de viver do homem pode evadir-se ou restaurar-se, seu sentimento de identidade vacilar ou corromper-se. A boca é uma das zonas mais investidas do corpo, não só por sua localização no centro da face, mas também porque ela encarna a palavra e via essencial de passagem à interioridade do indivíduo. O que ele respira ou come a penetra, para o melhor e o pior. A boca é o limiar da intimidade invisível mas essencial do foro íntimo.

Davi le Breton

Hoje o sentido é o paladar e quando lemos os capítulos do livro : Antropologia dos sentidos sobre este tema percebemos que a comestibilidade é um universo simbólico. Os sabores considerados bons e agradáveis são uma paleta não somente do que é disponibilizado materialmente na nossa sociedade, mas principalmente o que é determinado por nossa convivência e normas alimentares. A cozinha do estrangeiro, do outro pode ser considerada aversiva e moralmente repugnante.

prática de ingestão de insetos

“O conteúdo e a forma de consumir são delimitadores identitários poderosos” e se acompanharmos os sentimentos relacionados as críticas a estas diferenças, perceberemos o quanto pode ser violenta esta desconfiança e temor aos novos sabores.

comer de forma coletiva — muito comum em vários países

As mímicas gustativas trocadas entre mãe e bebê formam na primeira infância a forma de discriminar e valorar os sabores. Portanto a modificação num gosto assim tão nascente, requer aprendizagens intencionais e a persistência no entendimento de que existe outras formas de viver e se alimentar.

Cada culinária contém uma ecologia de ingredientes e tradições gustativas próprias, os sabores são letras de um alfabeto infinito. Você reconhece os seu vocabulário alimentar, sabe identificar seus sabores e temperos ?

Gosto não se discute, diz o adágio mas será que não podemos conversar sobre esta vivência ? Perceber que esta paleta é afetiva, ampliar suas possibilidades e experimentar outras formas desta sensível presença no mundo.

A repugnância é uma afirmação categórica, um não sonoro a este convite, que é percebido como uma ameaça. Um contato com a diferença que é percebida como um possível contágio. Podemos entender nesta leitura, que as cadeias de “fast food” funcionam como um caminho de padronização e conforto gustativo, quando você está imerso em outros sabores.

É claro que a aversão tem um componente de defesa e auto-proteção, o que o autor reflete em sua antropologia é o quanto levamos ao extremo este componente dos cuidados, chegando a uma espécie de higienismo alimentar.

Vale muito a pena, ler o capítulo : “A culinária da repugnância” com este olhar de alteridade e perceber quantas caras de nojo você faz em cada parágrafo. Depois me conta !

--

--

Adriana Costa

Apaixonada por plantas, música, literatura, educação e processos criativos. https://www.residenciacriativa.com/